três.

quinta-feira, dezembro 18

Crianças a passeio

Então me perguntei: O que faria enquanto Gui, meu sobrinho, amarrasse seus cadarços desajeitadamente?
Não foi uma pergunta de tédio, nada disso. Ocorreu-me, sim, quase como uma superstição, que eu deveria encontrar algo revolucionário e epifânico antes que o menino se levantasse com um dedo no nariz e declarasse vitória. Era isso.
Olhei o moleque. Olhei-o novamente. Os dedos enrolados me diziam que eu teria muito tempo, talvez suficiente para entrar naquele trem com portas a fechar dizendo Adeus, Gui, volto no dia em que tiver seus sapatos amarradinhos; ou me encostar ao balcão onde um homem comprava charutos e, enquanto ele me encarasse estupefato, tomar um de sua caixa, acendê-lo e tossir porque nunca fumei.
Ou mais: aquela menina encostada ao banco descascado tagarelava irritantemente. Poderia mandá-la se calar com um gesto obsceno. Não, não conseguiria, talvez um olhar pesado bastasse. E seria assim que me livraria do peso de encontrar a revolução antes de Gui amarrar seus sapatinhos cor de gema. Nada mais razoável para o momento, e preparei-me respirando fundo (o coração disparou diante da possibilidade) e calculei o momento certo com sabedoria.
Ah, ela não estava olhando.

terça-feira, novembro 11

Meus adeuses e um outro causo

Olha que à escola me seguiu o beija-flor, e de nada desconfiei, nem quando o vi desesperar-se entre as paredes. Apenas matei meu sorriso preocupada, pobrezinho, Só encontra a janela se ali o deixarem e vê que será apenas quando topar com alguma parede para lhe tirar a consciência.

Ah, beija-flor, agora te vejo à minha janela como de costume, ao entardecer, indeciso entre os postes de energia e uma árvore cuja espécie não me chama a atenção. Compreendo só aqui e agora: eras tu, azulzinho, de cauda bifurcada e inerente à minha existência nesta cidade!

Por que não me avisaste? A rotina de um pássaro pouco se assemelha à de um bicho como eu. Ter-te-ia avisado. Talvez não fôssemos tão semelhantes, sabes?, como te disse daquela outra vez.  Aquilo da outra falei tão somente porque estava feliz, e tens o mesmo direito de sentir felicidades e palpitações bem perto de teu coraçãozinho como eu sentia quando falavas comigo.

Ainda assim, meu beija-flor, não me queiras mal. Minha mãe, aquela de quem também já te falei, ela às vezes dizia que mais valem as semelhanças e compatibilidades. Eu mesmo sou incompatível contigo porque poucas flores alcanço, enquanto que o dono de minha escola ainda não resolveu plantá-las pelas paredes com as quais trombaste hoje de manhã.

Parece um adeus, não? Talvez o seja. Então, que fique aqui o aviso: não mais apareças sobre estes fios de alta tensão para papear. Ou isso, ou cerro minha janela pelos próximos dois anos, e mais triste te será bicar o vidro todas as tardes do que voar raramente pelas minhas bandas, tendo relances de meus sorrisos, desses que eu dava quando ainda sonhava semelhanças e futuros esquecidos. 

segunda-feira, outubro 27

Beijo marcado na parede

 e, depois, o arranhão em meu antebraço,

parte interna,

que eu mesma fiz distraída .

 

O beijo jogado no ar,

o tropeção ao andar de costas

sem olhar. Sorriso manchado 
nuns rostos meio sujos

Suados; alheios ao mundo.


Beijo marcado no rosto

Nas maçãs avermelhadas da face

Suposto sopro no olho

dos que espantam cílios teimosos;
dos que nos mantinham

distantes do resto.


Beijo que tomou tempo

que  durou parte da vida

E agora vejo partir, e distanciar

e diminuir.

E que não espero

sinceramente

voltar um dia. 

Olhos

Manhã quente, monótona, modorrenta. 
O céu amarelado pelo sol de aurora, o rosto da garota na janela: um pouco amassado, assim, distorcido; cabelo desgrenhado de sono, sorriso de calor, de desejo de frescor matinal então inexistente.
Um sopro mais fresco e vida e respiração. Pena não ser chuva -- se fosse, quem sabe, até voltaria às ondulações do reino da cama.

sexta-feira, setembro 5

Um dos últimos sonhos estranhos

Despediu-se na rua escura. Saía de algum lugar. Havia perigo e uma cabine telefônica vermelha. Postes de luz sobre o pano de fundo escuro, desestrelado.
Uma casa onde ela deveria entrar. Bonita; herdada? Passou pelo batente alto. Mofo, cheiro de morte, paredes revestidas por um papel ameno de infiltrações. Troféus de madeira corroídos pelo tempo – dois troféus no chão, estrategicamente colocados? – e era o monstro-tempo, não mais o tempo em si. E lá estava a outra, entre algumas das paredes ornamentadas e desornamentadas posteriormente, limpando tudo ao mesmo tempo, no que não limpava nada. Era velha, decadente, banguela, de onde vinha? Ela prometera limpar tudo direitinho, venha ajudar-me, garota. Agilizaria. E então ah, eram eles novamente. Monstros. Destruí-los. Seriam os monstros-tempo? Não sabia, mas sabia que devia matá-los antes que a matassem.
Subiria até a locadora, era lá que ele estava. Amigo, ajudaria a matá-los. Foram correndo, mas corriam mais rápido do que ela sempre correra. Depois, estavam lá. Morreriam?

Escolar - fraca pra explicar o que queria

Estava em uma sala apertada, sob luz oscilante de velas, inquieto, e desejava intensamente deixá-la antes que todos dali. Via-o sobressair-se no caixão, refletindo cada chama com a pele mais clara do que quando o conheci, completamente distante em um sono que não parecia querer compartilhar.

Éramos extremamente próximos e, talvez por isso, nunca imaginaria uma reação tão patética à sua morte quanto a minha foi. Quedei-me completamente frio, inabalável, estranho. Todos choravam, exceto eu e a mulher que se sentara ao meu lado.

Já não rezavam mais. Curiosamente, abandonei o instinto de fugir daquele ambiente logo que a família, chorosa, passou a se confortar. Era mais interessante que assistir ao sofrimento mudo anterior. Então, estranhamente, fiquei satisfeito em saber que ele não teria a chance de descobrir que os outros, pelo menos por aparência, sofriam mais do que eu.

A mulher ao meu lado fez algum comentário ao qual, primeiramente, não dei atenção. Observei-a perturbado; se fosse sua mãe, não saberia. Não conheci os familiares, apesar de nosso contato, mas ela estava impassível e era jovem demais. Tínhamos dezessete, ela aparentava quase trinta. Disse, então, ser tia dele. Completou meu silêncio reconhecendo-me como o amigo do qual ele sempre falava.

– Eu sei por que você também não chora, rapaz. – Sorriu, misteriosa. Ela sabia? Pois, então, que me explicasse. Mais estranho que achar motivos para deixar de sentir era ter de encontrar razões para quando não havia sentimento. Creio ter reagido à observação, mas antes que dissesse algo, ela prosseguiu. – Eu também acredito que Deus vá ajudá-lo, agora. Ele foi um bom garoto. Não tenho preocupações, porque Deus estará com ele.

E acho que me desesperei, no que ela continuou a discorrer sobre tudo que a despreocupava. Quis decepcioná-la, dizer-lhe que deus algum existia, tirar-lhe qualquer esperança porque eu mesmo já havia acabado com as minhas. Mas mantive-me quieto, escutando, como se assim pudesse expiar sua morte. Não havia aquele deus. Queria que ela também soubesse.

Estava pronto para questionar sua realidade quando, subitamente, percebi que aquilo ia além: Era uma realidade subjetiva e sim, existiria enquanto aquela mulher existisse e acreditasse. E então, meu ver de tudo se tornou apenas outra realidade. Eu não me responsabilizaria, não mais, pela verdade universal, porque pude sentir-me incapaz demais para isso.

Ela não parou de falar, mas senti um alívio que era ainda muito próximo ao desespero. Estava cansado, já era noite, mas sorri. Ela crer e eu não crer não mudava o fato de sua morte.

Pelo menos enquanto acreditássemos nela.

quinta-feira, julho 31

A (não)-coragem de conceber um texto

Extremamente solitário. Sentia-se assim por não saber por que assim se sentia. Isolado em seu quarto que não era seu, sentava-se por horas frente ao computador em tentativas vãs de fazer com que ele penetrasse a rede mundial por alguma conexão já existente. Nada feito.
E também olhava para o aparelho celular: não tocava. Um vazio preenchia-lhe o peito porque sabia que aqueles que tentassem um contato trariam mais e mais notícias ruins e ele, desesperado por um pouco de afeto familiar, comentaria banalidades em tons risonhos.

Então, decidiu não querer outra noite em prantos e suspiros sufocados pelo travesseiro colorido. Já estava confirmada, a notícia de que ela morrera. Por que não considerar suficiente seu sofrimento anterior e desviar o pensamento toda vez em que seu peito desmoronava? Era loucura, não? Controlar-se dessa forma como se a realidade fosse fantasia e a fantasia... Bem, essa não parecia existir.
Era ofensa, a fantasia existir. Ofensa contra todas as coisas vivas ou... Que já foram vivas.

segunda-feira, julho 21

A Salsicha Feiosa

Escrito provavelmente na minha segunda série do fundalmental (há dois números de telefone no verso de uma das folhas na forma antiga e, quando mudaram os números, eu estava na terceira. Logo, acreditando não ter escrito tal obra com sete anos, apostei mesmo na segunda série.). Meu bom estilo de pontuação pode causar estranhezas, mas aposto que ninguém diria nada se eu fosse famosa.
Copiei do jeito que estava, só passando "Pink" pra "Pinky". Ah, e não há plágio, apenas homenagens! (Hahaha)

Era uma vez uma caixa de salsicha, e uma salsicha feiosa.
Num belo dia, uma menina muito arteira, teimosa e curiosa que se chamava Felícia, comprou a caixa de salsichas. E ela tinha dois ratinhos: Pinky e Cérebro. Cérebro sempre quis dominar o mundo e Pinky, seu irmão, era o seu ajudante, mas sempre no fim da história eles acabavam se dando mal. Então eles planejaram envenenar todas as salsichas do mundo, foi quando Felícia, ao comer um cachorro quente, passou muito mal, tendo uma diarréia danada.
E todos que comiam salsichas passavam muito mal e os únicos que tinham o remédio certo que curava a doença chamada salsípia era o Pinky e o Cérebro, mas alguns dias depois Felícia mexeu nas coisas do Cérebro e encontrou o remédio, como ela era uma menina curiosa bebeu tudinho e como só era para beber uma gota ela virou um monstro bem grande e feioso.
Quando Cérebro viu quase teve um infarto do coração, correu para a sua gaiola e procurou, procurou o remédio para fugir, mas não achou, aí ele olhou para o chão e encontrou o vidro do remédio, foi lá pegar correndo mas logo quando ele chegou na gaiola ele viu que só estava lá o vidro e não o remédio e deu um grito tão alto que acordou o monstro, o monstro destruiu tudo coisa por coisa só deixou a caixa de salsichas. Aí ele começou a ouvir gritos que vinha da caixa de salsicha que dizia: "socorro socorro".
O monstro correu para lá e viu uma salsicha diferente de todas, uma salsicha feiosa. Que pulou em cima dele, o monstro começou a esperniar, esperniar, e derubou a salsicha feiosa e ela correu para a gaiola dos dois ratinhos e todos tremiam como se tivesse um terremoto dentro da gaiola, mas Cérebro teve uma idéia, pegou a receita do remédio, ele e seu irmão correram até a porta, a salsicha feiosa salvou os seus irmãos e também correu até a porta, e então todos fugiram para longe da casa. Aí eles entraram num hotel abandonado e lá construíram um laboratório secreto, encontraram uma solução para o caso da Felicia, e enquanto isso, o monstro foi à praia da cidade e como não tinha o que comer resolveu então comer peixes (os maiores que tinham).
Todos na praia saíram correndo, e depois de uns 90 segundos a polícia e um monte de gente estava lá.
Uma menina chamada Mariana começou a chorar e seu pai, Marcos, pegou ela no colo e saiu correndo, sua mãe, Marta, foi atrás correndo e gritando:
- Ai meu Deus me salve, por favor me salve! Ahhh!
E a polícia começou a atirar no monstro e ele, o monstro, saiu nadando até uma ilha cheia de frutas e frutos. Enquanto isso Cérebro estava preparando o remédio e Pinky estava "fuçando" nas coisas, achou uma bola de cristal e sem querer acordou a fada adormecida, Elisa, que tinha o apelido de Sisa.
Ela disse que podia realizar só um desejo e a salsicha logo percebeu que aquela fada era uma bruxa. Aí ela falou ao Pinky:
- Corra! Corra daquela bruxa.
Pinky sem nem desconfiar disse:
- Bruxa? Aonde? A fada nos ajudará!
Então A Salsicha Feiosa colocou seus irmãos junto com Cérebro, Pinky com a cura da Felícia dentro de um barril, empurraram ele por dentro, saíram rolando e conseguiram escapar.
Ninguém estava entendendo nada. Só a salsicha.
De repente o barril parou e explodiu. Era a fada, ou melhor, bruxa.
Já pela risada dela todos perceberam que ela era uma bruxa.
Por sorte ou por azar o monstro apareceu bem na hora. O monstro reconheceu os ratinhos e começou a brigar com a bruxa, de-repente a bruxa explodiu deixando todas as suas riquezas.
Todos ficaram aliviados, inclusive a salsicha feiosa.
Por sorte ninguém viu nada, imagine ter que explicar tudo aquilo.
Cérebro deu o antídoto para a Felícia voltar ao normal.
Agora Felícia muito agradecida por todos parou de fazer suas travessuras e sempre brinca com a salsicha feiosa, seus irmãos e os ratinhos, eles agora são todos grandes amigos.



Bom... Pouco a comentar. Talvez eu fosse melhor ao estruturar o enredo: Introdução, conflito, aparente resolução, conflito, resolução e desfecho. Ah, geniozinho... (Altos níveis de ironia).
Não precisam jogar na cara que escreviam melhor com oito anos. Aliás, precisam, mas esse texto foi meu orgulho literário por alguns anos.

sexta-feira, julho 18

Ódio e ópio aos Anjos



Da guerra, do vasto, do uniformemente desconexo, impróprio, pulsante e intenso, via pouco. Urgia-lhe desfazer-se daquela vasta massa de tons pastéis, a agonia em sons abafados por um vento atemporal. Desejava ver-se livre da batalha antes que seus ferimentos o tornassem sujo ou, possível, terrivelmente humano.
Depois, silêncio. Era do fundo do mesmo firmamento claro e volátil que muitos saíam. Incrivelmente, não tinha compaixão pelos que ficavam, respeitando-os por um possível resquício de consciência.
As cicatrizes desvaneciam-se à medida que suas asas desligavam-se das entranhas das nuvens. Arrastava-se incapaz de soltar-se dali, o medo da queda e milhões de outros devaneios transformando sua mente em uma luz inflame, ofuscante. A força... A força...
E qual não era a surpresa ao descobrir que o inferno também era ocupado por a
njos. Para eles, nada mudaria enquanto a guerra continuasse, não importando o lado pelo qual era lutada. Os caídos, esses perguntavam-se quando viriam os outros. Talvez desejassem. Talvez os ditos puros desejassem que quedas ocorressem entre eles.
Ele mesmo, secretamente, ainda era capaz de desejar alguma coisa.
Entre batalhas pinceladas, os mortais, sempre volúveis, pouco importavam enquanto em pequena quantidade. Erguia-se uma muralha vistosa entre o que anjos ou homens diziam de vida ou morte, partindo-se do princípio de que mortais, ao morrerem, poderiam tornar-se soldados e anjos, ao caírem, poderiam tornar-se mortais.
Carregavam, porém, uma gota do Delírio em cada pena. A consciência inexistia na maioria. O
contato entre mundos dera-lhes sentimentos humanos, que contrastavam com a incrível tendência à insensibilidade de um soldado sacro. Sua sanidade perdia-se aos poucos.
Desesperava-se novamente. Queria esmagar seu existir entre as mãos, contraindo os olhos fechados e escondendo a cabeça entre os braços. A eternidade era tão imensurável que certamente venceria sua teimosa existência.
Ouviu um forte ruído assemelhando-se, aos poucos, ao tom do ruflar frenético de asas incontáveis, negras ou alvas, a aproximar-se. Não precisavam de justificativas e, paradoxalmente, ele sabia por quê.

Seria a loucura usual da autodestruição, como cometer seu suicídio ou dar do ódio e ópio aos anjos.

quinta-feira, julho 10

Chá

Tomado por qualquer melancolia, descobriu-se a observar alguns gatos através da janela. Não lhe pertenciam, deixando-o levemente incomodado ao utilizá-los como distração.
Fazia, na verdade, apenas alguns minutos que se sentara àquela mesa. Redonda, de toalha bem colocada, de talheres prateados e um, apenas um, bule - como de costume, era claro - entre eles.
Prendeu-se ao bule, mental e fisicamente. Enquanto observava a viagem do café em expressão amena, estendia o olhar até o outro lado da substância. Era humano, talvez como ele, mas não certamente.
O bule reencontrava-se no centro da mesa. Ele aspirou o vapor do café: Era chá, e os felinos não mais ali estavam. Ouviu, então, vozes, comprovando que aquele do outro lado protestaria sua volta ao mundo de ações, onde pensamentos vigoravam apenas como lendas.
Era a velha mania de perder-se atrás dos olhos, desfocando rostos e atos - num ocasional, de forma permanente. Alegrava-lhe o conto de que esse permanente viria desfazer outras permanências e, por certo, piorar situações. Alegrava-lhe saber que a rotina logo viria fantasiada de inusitado para ele desesperar-se e, quando conformado, notar o disfarce e voltar ao modorrento não-sentir.
Havia mania ali, não havia? Era feliz assim, torturando-se. Fazia-se seguro e encobria sua face pueril com pesadas e ilusórias marcas de expressão. Desenhava sulcos em sua própria pele - boca, olhos, testa - para não precisar movê-la porque, secretamente e de qualquer forma, não saberia como.
A voz voltou a protestar. Certo, respiração compassada e olhar frívolo para fazê-lo feliz diante de sua mãe, a presença do outro lado do bule. Adorava ver aquele sorriso morrer. Vamos, mãe, sorria outra vez.

terça-feira, junho 10

"Se você abaixar bem entre as rodas..."

Era lá, naquela mesma vila parada e envolta por poeira colorida (pois não era preta nem branca).
O Guinaldo Naldinho, que do Naldão era filho e morava lá para as bandas da praça, resolveu mostrar aos moradores novos - todos burguesinhos - o quão pacato era aquele lugar.
Um ato banal, pois certo, era deitar-se nas ruas desprovidas de automóveis, bueiros e asfalto. Naldinho deitou, esticou bem as pernas e os braços secos e machucados para ocupar um grande espaço - maior possível. Não pôde ver, porém, o carro vermelho - rebaixado, monstruosamente rápido e, o principal, motor silencioso - correndo pela mesma rua.
Pois não é que vinha a máquina, galopando e fazendo da poeira fumaça vermelha de uma forma que faria muito pai ter inveja, pensaram todos mais Naldinho quando viram os almofadinhas gritando é o papai!, é o papai!, e a máquina indo na direção do moleque que estava com barriga d'água já fazia sete anos, mas ele tinha doze, e o carro já parecia sangue quando todos cochicharam que aquele ali já era, coitado do Naldão do açougue, quem mandou ter um filho assim, exibido, e Naldinho fechou os olhos e o automóvel passou bem.
"Não morri! Não morri! Urrul! Eu vivo!"
Eu poderia continuar por aqui, mas... Para quê, se esse aí já virou lenda?

terça-feira, maio 13

Querida, cuide para que as crianças não fantasiem

Agucei os olhos. Não via nada além de eu mesmo sentado sob a cobertura de um ponto de ônibus.
Tinha fome; meu outro ser comia. Pedi-me um pedaço. Parecia encarar meus olhos famintos, ponderar sobre as conseqüências de alimentar-me. Por si só, demasiadamente perigosas.
Caso o fizesse, seria apenas meu, o alimento. Fortalecido, tomaria o lugar de meu outro eu. Trivialidades. Mas doía-lhe o peito ao ver sua própria fantasia implorar um pedaço daquilo.
Deu.
Senti o peito inexistente esquentar-se: a respiração metafórica voltava. Minha outra parte, sutilmente enfraquecida, observava-me em total apreensão. Conhecíamos esse final.
Era eu, agora, a consciência dominante.

quinta-feira, maio 8

Da epifania

Estava no local que mais identificava sua vida. Subiu as escadas envoltas por grama, lembrava-se das árvores que cobriam seu céu ainda como mudas. Fazia tempo.
Chegou ao degrau mais alto. Era estranho fazê-lo sozinho pela primeira vez, sem a outra voz que, às vezes, manifestava-se apenas em respiração e pensamentos.
Olhou além. A paisagem não era a mesma. Teria ele um porquê ao estranhar os mesmos troncos próximos e o arbusto galhoso ao lado do lago?
Viu materializar-se um corpo.
Não se moveram, o corpo materializado nem quem o via. Aparentava até indiferença ao rosto reconhecido. Ainda parecia quente, talvez respirasse - mas o punhal estava ali, em seu peito, aguardando o sangue terminar seu êxodo.
Sentiu o próprio peito dilacerar-se como há muito não fazia. A incredulidade resumiu-o a um choro silencioso, sereno, internamente destrutivo. Sentia toda a fragilidade da existência sobre si, os últimos sentimentos tomando parte em sua quase extinta racionalidade. Milênios de Filosofia foram-lhe revelados em dois instantes.
Piscou os olhos: era tudo irrealidade. A paisagem ainda era a mesma da década anterior. Não havia morte. Seu corpo ainda existia na monotonia da insensibilidade. Seria possível ter sentido falta daquele devaneio?
Voltou-se para os mesmos degraus. Provavelmente, no horário marcado. Ao pé da escada, viu aquele que fora a razão de sua vinda. Em um retrato congelado pelo tempo, o olhar nostálgico atravessando-o. Lembrou-se de algum dos beijos de anos atrás. Eram a mesma pessoa, a nova presença e o cadáver.
Sentiu seu coração voltar a acelerar. Então, compreendeu. Retirando o instrumento do bolso, seguiu até o outro rapaz e apunhalou-lhe o peito.

quinta-feira, maio 1

De quando se absorve envoltórios

A essência do seu "ser" perdeu-se havia considerável tempo. Passou, então, a concentrar-se mais no "agir".
Tentou distinguir sua antiga vida, aquela da completa puerícia, com a sua atual. Muita diferença. Aí se lembrou das preocupações do seu mais-do-que inexistente "ser". Certo, quase nunca existira.
Talvez na infância feliz que tivera. Ele sabia ser naquela época, mesmo de uma forma nada brilhante. Tinha as suas criações, a sua casa, a sua maneira de agir, os seus pais. Agora nada mais parecia exclusiva e originalmente seu.
Parou para pensar que nem mais o seu vazio "pensar", perdido em seu inexistente "ser", era bem próprio.
Então percebeu que seria melhor desabitar a moradia dos não tão seus pensamentos sem propósito.
Estava de volta à sala com cheiro de chá mate. Agradeceu-se por ter fechado as janelas quando ouviu a chuva caindo.

segunda-feira, abril 21

Especialidades

Além da necessidade fisiológica, não havia razões para que ela pedisse companhia. Ninguém teria a oferecer, porém. Ninguém queria envolver-se.
Ela era tão ela mesma que não havia solução: ficaria só, teria de aprender a ser uma.
Porque todos os caminhos levavam-na a não ser ela e outra. Outra pessoa. Parecia que o obstáculo fora ser diferente, e agora não mais havia diferente - havia ser só.
Por que a razão não habitava aquela mente? Precisava-se de razão, apesar de não ter controle emocional.
Não era uma desequilibrada: ela apenas mantinha-se fria nos momentos decisivos. Naqueles em que se devia ser emotiva, não deixava transparecer pensamentos. E para isso, não sentia. Anulava sua sensibilidade em nome do equilíbrio,
Nos momentos exigentes de calculismo? Tinha o contrário, puro instinto! Era inútil para a sociedade. Seria sempre.
Qual era a sua missão ali?

Bestialidades quotidianas

Pôde olhar para os olhos de quem lhe falava.
Percebeu que ia muito além do espaço entre os verbos ''usar" e "amar", o roçar de dois lábios e corpos.
Afinal, estaria usando uma pessoa que não ama ao tocá-la como se a amasse? Talvez fosse o contrário: há como se aprender a amar. Mas há?
Não, não queria basear seus pensamentos em amor. Queria sentir-se amado sem amar, apenas isso. Seria errado?
Teria de existir o meio-termo. Então, bebericou um pouco do vinho. Qual seria? Essa pessoa queria um verbo - não "desejar", "ter curiosidade", nada disso.
Se existisse, o que seria?

domingo, abril 13

Hoje, pensei...

Quanto maior a máscara, pior tende a ser o interior.
O problema de conhecer é ter de entender. Não quero que tire sua máscara. Não seja outro que não o outro. Tenho medo de ter de entendê-lo... e não conseguir.

sábado, março 29

Primeira Indiferença

Havia vários meses que pensava naquilo, e agora, ao ter a garota nos braços, não sabia como progredir. Queria, sim, beijá-la, abraçá-la, sussurrar algo já pronto, como tanto imaginara ansiosamente. Mas mantinha-se paralisado, priorizar uma opção ser-lhe-ia impossível.
Escolheu beijá-la. Estupefato, descobriu não sentir nada. Grande desejo de sua vida e... Não era o momento.
Então a abraçou, beijou seu rosto tantas vezes e sussurrou tantas coisas que mal se lembrou de prioridades. Nada. Onde estava toda a tensão de seus músculos? Por que nada mais girava em suas entranhas?
Pagou a conta e deixou o lugar.

domingo, março 2

Definindo sensações

A noite o fazia grande. Era o cheiro, o toque, a sensação de infinito. De ser escura o suficiente para que ninguém o visse fingir ser grande. Talvez fosse apenas a origem de seu próprio fim ao ser começo de sua existência.

E agora seria sua companheira eterna, essa tal noite.

quinta-feira, fevereiro 7

Da vida aqui dentro

Da janela do hotel
Passa gente
Passa vida encubada
Passa gente
Passam tantas histórias
E gente
Passa tanta gente
Que eu nem sei mais contar.