três.

sexta-feira, setembro 5

Um dos últimos sonhos estranhos

Despediu-se na rua escura. Saía de algum lugar. Havia perigo e uma cabine telefônica vermelha. Postes de luz sobre o pano de fundo escuro, desestrelado.
Uma casa onde ela deveria entrar. Bonita; herdada? Passou pelo batente alto. Mofo, cheiro de morte, paredes revestidas por um papel ameno de infiltrações. Troféus de madeira corroídos pelo tempo – dois troféus no chão, estrategicamente colocados? – e era o monstro-tempo, não mais o tempo em si. E lá estava a outra, entre algumas das paredes ornamentadas e desornamentadas posteriormente, limpando tudo ao mesmo tempo, no que não limpava nada. Era velha, decadente, banguela, de onde vinha? Ela prometera limpar tudo direitinho, venha ajudar-me, garota. Agilizaria. E então ah, eram eles novamente. Monstros. Destruí-los. Seriam os monstros-tempo? Não sabia, mas sabia que devia matá-los antes que a matassem.
Subiria até a locadora, era lá que ele estava. Amigo, ajudaria a matá-los. Foram correndo, mas corriam mais rápido do que ela sempre correra. Depois, estavam lá. Morreriam?

Escolar - fraca pra explicar o que queria

Estava em uma sala apertada, sob luz oscilante de velas, inquieto, e desejava intensamente deixá-la antes que todos dali. Via-o sobressair-se no caixão, refletindo cada chama com a pele mais clara do que quando o conheci, completamente distante em um sono que não parecia querer compartilhar.

Éramos extremamente próximos e, talvez por isso, nunca imaginaria uma reação tão patética à sua morte quanto a minha foi. Quedei-me completamente frio, inabalável, estranho. Todos choravam, exceto eu e a mulher que se sentara ao meu lado.

Já não rezavam mais. Curiosamente, abandonei o instinto de fugir daquele ambiente logo que a família, chorosa, passou a se confortar. Era mais interessante que assistir ao sofrimento mudo anterior. Então, estranhamente, fiquei satisfeito em saber que ele não teria a chance de descobrir que os outros, pelo menos por aparência, sofriam mais do que eu.

A mulher ao meu lado fez algum comentário ao qual, primeiramente, não dei atenção. Observei-a perturbado; se fosse sua mãe, não saberia. Não conheci os familiares, apesar de nosso contato, mas ela estava impassível e era jovem demais. Tínhamos dezessete, ela aparentava quase trinta. Disse, então, ser tia dele. Completou meu silêncio reconhecendo-me como o amigo do qual ele sempre falava.

– Eu sei por que você também não chora, rapaz. – Sorriu, misteriosa. Ela sabia? Pois, então, que me explicasse. Mais estranho que achar motivos para deixar de sentir era ter de encontrar razões para quando não havia sentimento. Creio ter reagido à observação, mas antes que dissesse algo, ela prosseguiu. – Eu também acredito que Deus vá ajudá-lo, agora. Ele foi um bom garoto. Não tenho preocupações, porque Deus estará com ele.

E acho que me desesperei, no que ela continuou a discorrer sobre tudo que a despreocupava. Quis decepcioná-la, dizer-lhe que deus algum existia, tirar-lhe qualquer esperança porque eu mesmo já havia acabado com as minhas. Mas mantive-me quieto, escutando, como se assim pudesse expiar sua morte. Não havia aquele deus. Queria que ela também soubesse.

Estava pronto para questionar sua realidade quando, subitamente, percebi que aquilo ia além: Era uma realidade subjetiva e sim, existiria enquanto aquela mulher existisse e acreditasse. E então, meu ver de tudo se tornou apenas outra realidade. Eu não me responsabilizaria, não mais, pela verdade universal, porque pude sentir-me incapaz demais para isso.

Ela não parou de falar, mas senti um alívio que era ainda muito próximo ao desespero. Estava cansado, já era noite, mas sorri. Ela crer e eu não crer não mudava o fato de sua morte.

Pelo menos enquanto acreditássemos nela.