três.

terça-feira, maio 13

Querida, cuide para que as crianças não fantasiem

Agucei os olhos. Não via nada além de eu mesmo sentado sob a cobertura de um ponto de ônibus.
Tinha fome; meu outro ser comia. Pedi-me um pedaço. Parecia encarar meus olhos famintos, ponderar sobre as conseqüências de alimentar-me. Por si só, demasiadamente perigosas.
Caso o fizesse, seria apenas meu, o alimento. Fortalecido, tomaria o lugar de meu outro eu. Trivialidades. Mas doía-lhe o peito ao ver sua própria fantasia implorar um pedaço daquilo.
Deu.
Senti o peito inexistente esquentar-se: a respiração metafórica voltava. Minha outra parte, sutilmente enfraquecida, observava-me em total apreensão. Conhecíamos esse final.
Era eu, agora, a consciência dominante.

quinta-feira, maio 8

Da epifania

Estava no local que mais identificava sua vida. Subiu as escadas envoltas por grama, lembrava-se das árvores que cobriam seu céu ainda como mudas. Fazia tempo.
Chegou ao degrau mais alto. Era estranho fazê-lo sozinho pela primeira vez, sem a outra voz que, às vezes, manifestava-se apenas em respiração e pensamentos.
Olhou além. A paisagem não era a mesma. Teria ele um porquê ao estranhar os mesmos troncos próximos e o arbusto galhoso ao lado do lago?
Viu materializar-se um corpo.
Não se moveram, o corpo materializado nem quem o via. Aparentava até indiferença ao rosto reconhecido. Ainda parecia quente, talvez respirasse - mas o punhal estava ali, em seu peito, aguardando o sangue terminar seu êxodo.
Sentiu o próprio peito dilacerar-se como há muito não fazia. A incredulidade resumiu-o a um choro silencioso, sereno, internamente destrutivo. Sentia toda a fragilidade da existência sobre si, os últimos sentimentos tomando parte em sua quase extinta racionalidade. Milênios de Filosofia foram-lhe revelados em dois instantes.
Piscou os olhos: era tudo irrealidade. A paisagem ainda era a mesma da década anterior. Não havia morte. Seu corpo ainda existia na monotonia da insensibilidade. Seria possível ter sentido falta daquele devaneio?
Voltou-se para os mesmos degraus. Provavelmente, no horário marcado. Ao pé da escada, viu aquele que fora a razão de sua vinda. Em um retrato congelado pelo tempo, o olhar nostálgico atravessando-o. Lembrou-se de algum dos beijos de anos atrás. Eram a mesma pessoa, a nova presença e o cadáver.
Sentiu seu coração voltar a acelerar. Então, compreendeu. Retirando o instrumento do bolso, seguiu até o outro rapaz e apunhalou-lhe o peito.

quinta-feira, maio 1

De quando se absorve envoltórios

A essência do seu "ser" perdeu-se havia considerável tempo. Passou, então, a concentrar-se mais no "agir".
Tentou distinguir sua antiga vida, aquela da completa puerícia, com a sua atual. Muita diferença. Aí se lembrou das preocupações do seu mais-do-que inexistente "ser". Certo, quase nunca existira.
Talvez na infância feliz que tivera. Ele sabia ser naquela época, mesmo de uma forma nada brilhante. Tinha as suas criações, a sua casa, a sua maneira de agir, os seus pais. Agora nada mais parecia exclusiva e originalmente seu.
Parou para pensar que nem mais o seu vazio "pensar", perdido em seu inexistente "ser", era bem próprio.
Então percebeu que seria melhor desabitar a moradia dos não tão seus pensamentos sem propósito.
Estava de volta à sala com cheiro de chá mate. Agradeceu-se por ter fechado as janelas quando ouviu a chuva caindo.