três.

domingo, janeiro 20

Ainda sobre a Chapeuzinho...

- Você tem mesmo a chave?

Ela era pequena, notável, ainda tinha feitio de menina. Mechas pesadas de um loiro apagado cobriam sua testa e pequenos ombros. Seu cheiro de criança tomava o rapaz em total delicadeza enquanto andavam, e ele ainda sorria incrédulo da ingenuidade dela.

- Você não está me enganando, está?

Pararam frente a uma porta corroída e ele pousou a lanterna no chão.

- Eu? – sorriu, uma onda de ternura atravessou-lhe o peito. – É claro que não, minha pequena.

Ela reagiu instantaneamente ao rapaz, como ele esperava que fizesse. Envolveu-lhe o rosto ossudo e mal-barbeado com as mãozinhas de esmalte gasto, espantou qualquer receio e deixou que a beijasse nos lábios frágeis e vivos.

Ele abriu a porta um pouco mais nervoso – era realmente uma pena que não pudessem ficar juntos.

A cama na qual se deitaram exalava cheiro de mofo como todos os outros móveis daquele lugar. Os lençóis pareciam ter sido trocados recentemente.

O rapaz passou a alisar extasiado o cabelo da garota. Focalizou seus olhos nos dela e sentiu toda a culpa do que viria a fazer. Com a mão, fechou-os.

Todos os abismos entre eles fizeram-se ausentes, exceto os quinze anos de vantagem do rapaz nesse mundo. De qualquer maneira, aquele pequeno corpo, o qual tomava, já poderia gerar seu filho.

Ela dormira. A culpa frisou-se com a chuva e noite profunda. Ele verificou as horas e a lâmina.

Depois de silenciosos minutos, notou preocupado que na única chave também restava um pouco do sangue.
Perdeu-a ao tentar limpá-la na enxurrada
.

terça-feira, janeiro 8

Dois

Autopiedade: amargura com desânimo e egoísmo.
Definição tola. Ele afundava-se em autopiedade enquanto se tentava traduzir. Tolice também, já que era incapaz de fazê-lo.

Resolveu levantar-se.

Fez café fraco e tragou alguns cigarros. Adorava o cheiro forte do café fraco com alguns cigarros. Na verdade, cada vez mais os cheiros desapareciam diante do cheiro de nicotina e outras muitas substâncias que cozinhavam em seu pulmão, estômago, faringe, laringe ou qualquer outra cavidade disponível em seu corpo. De novo a autodestruição.

Devia estar ficando velho, ranzinza e egocêntrico. Enquanto tomava um banho, pensou há quanto tempo, na verdade, compartilhava dos dois últimos (auto)adjetivos.

segunda-feira, janeiro 7

Um

O consumo do álcool ou qualquer outra substância que o corroesse por dentro já não fazia tanta diferença, só potencializava seu desejo de autodestruição. Sentia como se seu corpo não fosse mais tão-seu, e sim do vento que abraçava seu pescoço com cheiro de noite, cheiro de nuvem, cheiro de lua.

Aspirou todos os cheiros juntos ao cheiro de fumaça.

E de repente foi tomado pela súbita euforia. Alegria em sentar-se ali, em ver vida ao seu lado, ao ouvir o tão-novo som de cordas de um violão invadindo suas orelhas.

Procurou onde basear sua euforia. A sensação, como já era de se esperar, passou.

De volta ao mundo seco com cheiro de cigarro. Iria pra casa, afinal.