três.

quinta-feira, maio 8

Da epifania

Estava no local que mais identificava sua vida. Subiu as escadas envoltas por grama, lembrava-se das árvores que cobriam seu céu ainda como mudas. Fazia tempo.
Chegou ao degrau mais alto. Era estranho fazê-lo sozinho pela primeira vez, sem a outra voz que, às vezes, manifestava-se apenas em respiração e pensamentos.
Olhou além. A paisagem não era a mesma. Teria ele um porquê ao estranhar os mesmos troncos próximos e o arbusto galhoso ao lado do lago?
Viu materializar-se um corpo.
Não se moveram, o corpo materializado nem quem o via. Aparentava até indiferença ao rosto reconhecido. Ainda parecia quente, talvez respirasse - mas o punhal estava ali, em seu peito, aguardando o sangue terminar seu êxodo.
Sentiu o próprio peito dilacerar-se como há muito não fazia. A incredulidade resumiu-o a um choro silencioso, sereno, internamente destrutivo. Sentia toda a fragilidade da existência sobre si, os últimos sentimentos tomando parte em sua quase extinta racionalidade. Milênios de Filosofia foram-lhe revelados em dois instantes.
Piscou os olhos: era tudo irrealidade. A paisagem ainda era a mesma da década anterior. Não havia morte. Seu corpo ainda existia na monotonia da insensibilidade. Seria possível ter sentido falta daquele devaneio?
Voltou-se para os mesmos degraus. Provavelmente, no horário marcado. Ao pé da escada, viu aquele que fora a razão de sua vinda. Em um retrato congelado pelo tempo, o olhar nostálgico atravessando-o. Lembrou-se de algum dos beijos de anos atrás. Eram a mesma pessoa, a nova presença e o cadáver.
Sentiu seu coração voltar a acelerar. Então, compreendeu. Retirando o instrumento do bolso, seguiu até o outro rapaz e apunhalou-lhe o peito.

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