três.

quarta-feira, fevereiro 6

Pra quem ainda nem pensou sobre felicidade impensada

Tudo se traduzia em nomes, mas ela só queria expulsá-los de sua superfície de pensamentos. Imaginou poder tomar apenas o sumo de cada objeto, ato ou sensação. Desejava uma promessa de temporadas cegas em relação aos nomes, porém sedentas de energia. Era ela que, naquele momento, estava sedenta por espasmos de sentimentos, seu corpo já pesava de tão material.

Sim, era liberdade que queria!

Irrealidade clandestina de suposições

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Deu-lhe mais um beijo, mas já tinha intenções de ir embora. Também não fazia questão alguma de dançar, então não faria tanta diferença se fosse ou ficasse naquele local junto àquela garota. Até que era bonita ou arrumada - também não fazia diferença.

Deixou-a em sua casa negando qualquer pedido de permanência e seguiu rumo à própria.

Desligou o carro. Não estava tão cansado, nem tão bêbado - um bom sinal ou talvez resultado de noite ruim. Apesar de ter feito da bebida um mau hábito, deixava-o mais à vontade em relação a outras pessoas.

Despiu-se, comeu alguma coisa e escovou os dentes. Deitou-se pensando no que iria pensar antes do sono, achando engraçado como o perdia quando se deitava para dormir. Tomou alguns acontecimentos como ideais.

Não ficava remoendo lembranças, muito menos nos últimos tempos. Havia institucionalizado um descanso mental em sua vida, relacionamentos finalizados levavam a isso. Achou interessante, porém, a forma como algo tão sem sentido, sem futuro nem passado, viesse a encontrar seus pensamentos naquele instante.

Até sentiu falta do corpo diminuto. Ali, no seu quarto, no escuro do quarto e da mente, não faria tanta diferença pensar ou não pensar nela. Abraçou o travesseiro embalado no sonho induzido.

Sol, dor no corpo. Já havia esquecido-se completamente dos seus últimos pensamentos em consciência.

domingo, janeiro 20

Ainda sobre a Chapeuzinho...

- Você tem mesmo a chave?

Ela era pequena, notável, ainda tinha feitio de menina. Mechas pesadas de um loiro apagado cobriam sua testa e pequenos ombros. Seu cheiro de criança tomava o rapaz em total delicadeza enquanto andavam, e ele ainda sorria incrédulo da ingenuidade dela.

- Você não está me enganando, está?

Pararam frente a uma porta corroída e ele pousou a lanterna no chão.

- Eu? – sorriu, uma onda de ternura atravessou-lhe o peito. – É claro que não, minha pequena.

Ela reagiu instantaneamente ao rapaz, como ele esperava que fizesse. Envolveu-lhe o rosto ossudo e mal-barbeado com as mãozinhas de esmalte gasto, espantou qualquer receio e deixou que a beijasse nos lábios frágeis e vivos.

Ele abriu a porta um pouco mais nervoso – era realmente uma pena que não pudessem ficar juntos.

A cama na qual se deitaram exalava cheiro de mofo como todos os outros móveis daquele lugar. Os lençóis pareciam ter sido trocados recentemente.

O rapaz passou a alisar extasiado o cabelo da garota. Focalizou seus olhos nos dela e sentiu toda a culpa do que viria a fazer. Com a mão, fechou-os.

Todos os abismos entre eles fizeram-se ausentes, exceto os quinze anos de vantagem do rapaz nesse mundo. De qualquer maneira, aquele pequeno corpo, o qual tomava, já poderia gerar seu filho.

Ela dormira. A culpa frisou-se com a chuva e noite profunda. Ele verificou as horas e a lâmina.

Depois de silenciosos minutos, notou preocupado que na única chave também restava um pouco do sangue.
Perdeu-a ao tentar limpá-la na enxurrada
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terça-feira, janeiro 8

Dois

Autopiedade: amargura com desânimo e egoísmo.
Definição tola. Ele afundava-se em autopiedade enquanto se tentava traduzir. Tolice também, já que era incapaz de fazê-lo.

Resolveu levantar-se.

Fez café fraco e tragou alguns cigarros. Adorava o cheiro forte do café fraco com alguns cigarros. Na verdade, cada vez mais os cheiros desapareciam diante do cheiro de nicotina e outras muitas substâncias que cozinhavam em seu pulmão, estômago, faringe, laringe ou qualquer outra cavidade disponível em seu corpo. De novo a autodestruição.

Devia estar ficando velho, ranzinza e egocêntrico. Enquanto tomava um banho, pensou há quanto tempo, na verdade, compartilhava dos dois últimos (auto)adjetivos.

segunda-feira, janeiro 7

Um

O consumo do álcool ou qualquer outra substância que o corroesse por dentro já não fazia tanta diferença, só potencializava seu desejo de autodestruição. Sentia como se seu corpo não fosse mais tão-seu, e sim do vento que abraçava seu pescoço com cheiro de noite, cheiro de nuvem, cheiro de lua.

Aspirou todos os cheiros juntos ao cheiro de fumaça.

E de repente foi tomado pela súbita euforia. Alegria em sentar-se ali, em ver vida ao seu lado, ao ouvir o tão-novo som de cordas de um violão invadindo suas orelhas.

Procurou onde basear sua euforia. A sensação, como já era de se esperar, passou.

De volta ao mundo seco com cheiro de cigarro. Iria pra casa, afinal.